sábado, 13 de setembro de 2008

Considerações sobre a Cigana Esmeralda e o musical Notre Dame de Paris




O musical Notre Dame de Paris promove um resgate do espírito da obra de Victor Hugo, publicada em 1831. Notre Dame de Paris já foi alvo de várias versões cinematográficas e montagens teatrais, e se converteu até mesmo num desenho infantil de enorme sucesso, embora o escopo da obra não se preste a tal interpretação.
O livro é um clássico mundial que nos apresenta algumas das milenares questões que se impõe à sociedade ao longo dos séculos, portanto, o musical, embora ambientado na Paris de 1482, nos fala de conflitos que marcam a contemporaneidade: a problemática da intolerância, da desigualdade social, da exclusão.
Sobretudo, Luc Plamondon (letras das canções) e Richard Cocciante (músicas), responsáveis pela adaptação do texto, conseguem captar e transmitir o sentido que alicerça a obra Notre Dame de Paris: a dimensão filosófica que revela a paixão como forma de olhar o mundo.
O romance retrata a história da linda cigana Esmeralda, cujo destino trágico se entrelaça com o de três homens cuja paixão ela desperta com sua dança e seu canto: Quasímodo, Frollo e Phoebus.
Quasímodo é o deformado sineiro da catedral de Notre Dame. É escravo de Frollo (o orgulhoso arquidiácono da catedral e a maior autoridade de Paris), que o recolheu ainda criança. Quasímodo vive numa solidão atroz, encerrado na torre da catedral e tendo por companhia os acordes das campanas. Sua deformidade física é considerada uma marca do demônio, e o torna alijado de qualquer possibilidade de convívio humano. Entretanto, Quasímodo é um homem de grande sensibilidade e, através dessa personagem, V. Hugo antecipa a discussão da dualidade essência/aparência, tão presente em nosso tempo.
O amor de Quasímodo pela cigana Esmeralda se diferencia da paixão que Frollo e Phoebus sentem por ela; trata-se de um amor apaixonado e pleno de desejo, mas que não a toma como objeto. Ou seja, ele se deixa consumir pelo sentimento, mas não permite que esse sentimento o autorize a consumi-la. Nessa interpretação reside a chave para que compreendamos Esmeralda e seus símbolos, em plenitude.
Frollo, sacerdote de Notre Dame, pertence a Deus, que, teoricamente, retribui sua pertença com a autoridade que lhe confere. Esmeralda ameaça essa autoridade, já que simboliza o caos da liberdade da qual ele abdicou em troca do poder. O sacerdote de Notre Dame deseja subjugar a cigana, possuindo-a e, assim, tentando destruir o poder que seu próprio desejo - sua humanidade - ainda exerce sobre ele, e da qual a cigana o faz ficar inteiramente consciente.
Phoebus, por sua vez, é o capitão dos arqueiros, o cavaleiro valente e “belo como o sol”, a quem Esmeralda entrega o seu coração. Phoebus é a antítese de Quasímodo, personagens representativos da dualidade aparência e essência. Para o capitão, Esmeralda é um objeto desfrutável, ele tem o direito de possuí-la, pois ela vem de estratos sociais inferiores, é serva. Ele não compreende que a cigana simboliza uma liberdade que está inteiramente fora do seu alcance; quando atina com essa verdade, Esmeralda passa a ser vista como uma ameaça, uma “bruxa” que o traz sob conjuro.
Assim, Esmeralda simboliza, sobretudo, a liberdade. Frollo e Phoebus encarnam os homens subjugados àquilo que lhes confere poder: presos ao êxtase da dominação voluntária, fundamentada na aparência das coisas. Qualquer semelhança com o modelo social vigente neste bárbaro século XXI não é mera coincidência.
Quasímodo, retrato da exclusão e de tudo o que nossos olhos não querem mirar, sabe que a cigana Esmeralda é a liberdade – ele a descreve como um pássaro que estende as asas, pronto para voar. A sua paixão é mágica e verdadeira, pois não quer “possuir o objeto” do seu desejo, mas fundir-se a ele, ser um com ele. Ele mergulha no deslumbramento erótico que Esmeralda produz, sem medo, sem reservas, pois é o único que não tem nada a perder.
Parece-me que a suprema lição de V. Hugo é justamente essa: a liberdade e o amor pertencem àqueles que não têm nada a perder. O musical Notre Dame de Paris consegue traduzir, em danças e cantos, essa verdade.

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